Amo, pelas demoradas de Verão... [French translation]
Amo, pelas demoradas de Verão... [French translation]
. . Amo, pelas tardes demoradas de Verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício.
. . A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto.
. . Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele.
. . Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas.
. . De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada.
. . Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu.
. . Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas.
. . Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
***
. . Mas há mais alguma coisa...
. . Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar.
. . Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituirem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
- Artist:Bernardo Soares
- Album:Livro do desassossego (1982) - LdoD 003